Falar de São João é viajar no túnel do tempo e reviver a
minha doce infância, mais bela e festiva que as noites de Natal.
Jayme Galvão começava a preparar o licor de Jenipapo, seis
meses antes. Não existia nenhum licor no vilarejo que tivesse melhor sabor.
A compra dos fogos de artifício e a fogueira também ficavam a cargo do meu amado
e inesquecível pai. Traques, bombinhas, cobrinhas,chuveirinhos, carrapetas, estrelinhas e pequenos balões.
A preparação da canjica (curau), do mungunzá, das pamonhas, dos pés de moleque e outras iguarias juninas
ficavam a cargo de Zildinha, minha doce incomparável mãe.
O quintal virava um dia de festa. Sentados numa esteira em círculo, eu e meus quatro irmãos, vizinhos, ajudantes, primos, tínhamos que descascar uma montanha de milho e debulhar uma a uma. Mais de 10 cocos eram abertos, ralados e extraído o leite de coco. O milho era processado, manualmente, numa máquina moedora, passado por peneiras e colocado num caldeirão grande. Mamãe, temperava o curau com todos os ingredientes sem esquecer o cravo e a canela. O caldeirão era levado ao fogão e mexido com colher de pau para que não encaroçasse. O abano controlava as brasas que crepitavam em leves fagulhas. Era uma algazarra geral. Minha mãe, lenço lindo na cabeça, conversava sem parar e sorria em seu corpo pequenino, como se fosse a rainha do formigueiro junino. Meu pai ajudava a mexer o caldeirão que ia pouco a pouco engrossando e pesando mais e mais. O ponto final era dado por minha mãe que jamais perdia o corte da canjica.
Todas as iguarias eram preparadas com igual rigor. O sal e o açúcar obedeciam o paladar materno que jamais falhava.
A casa inteira era iluminada pelos aladins e candeeiros rigorosamente lavados para que brilhassem muito mais.
A canjica era despejada em diversas travessas e as pequenas, enviadas aos vizinhos e amigos mais queridos.
A mesa da sala de visita, com toalha de festa era enfeitada com uma mine fogueira azul tendo ao centro um vazo verdejante de arroz plantado dois meses antes. As garrafas de licor eram adornadas com silhuetas de mulheres lindas.
Os pratos com as iguarias eram distribuídos por toda a mesa.
A tão sonhada noite chegava lentamente.
Meu pai ligava o único rádio do arraiá o mais alto que pudesse. Escancarava as janelas e portas que se enchiam para escutar Luiz Gonzaga que abria o fole e cantava:
"A fogueira tá queimando
Em homenagem a São João
O forró já começou
Vamos gente, rapapé nesse salão."
A frente das casas, fogueiras crepitavam em fagulhas que se erguiam ao céu, beijando as estrelas. A fogueira do meu pai era a mais alta, bela e imponente. Do tamanho da sua alegria e da sua coragem.
Todos os anos, os fogos eram comprados na cidade vizinha de Coaraci ou Itabuna. Quando saltava do cavalo meu pai, combinado com minha mãe, escondiam o pacote sobre o guarda-roupa e dizia para os filhos: -Este ano não vai ter fogos. Não encontrei em lugar nenhum. Fingíamos entristecidos sem revelar que o esconderijo já era conhecido pelos filhos e primos.
Itamotinga que não tinha luz elétrica era iluminada pelas fogueiras que jorravam fagulhas
a mercê dos ventos. O arraial era o mais belo do mundo. O céu descia à terra.
A criançada menos favorecida aportava à nossa casa sabendo que todos os anos recebiam pacotinhos de fogos carinhosamente preparados.
Era lindo e emocionante, olhar para as serras que circundavam o lugarejo e ver as pessoas das fazendas vizinhas descendo em fila iluminadas por fifós. Pareciam estrelas cadentes descendo com vestidos novos e camisas estampadas, comprados na única loja do seu Jayme e Dona Zilda. Era um ritual vestir roupas novas de chita e camisas quadriculadas.
Ainda escuto o som das sanfonas e vozes cantando baião, xaxado e forró.
Ainda escuto o som da nossa própria alegria e de todas as pessoas que se visitavam perguntando:
- São João passou por aí?
Meus pais com sorrisos largos respondiam:
- Passou sim. Entrem e venham saborear os pratos à mesa e um cálice de licor de Jenipapo.
O mais lindo de tudo isto é que nossa pequena Itamotinga se unia e se irmanava no mesmo DNA da alegria.
A lua branca abria um sorriso largo e dançava sem perder o brilho majestoso, enquanto as estrelas desciam e se misturavam com o chuvisco ardente e flamejante das fogueiras acesas.
Na manhã seguinte, toras de madeiras caídas a chão em meio a cinzas e brasas vivas esquentavam a nossa saudade e a certeza que São João dançou e cantou até o amanhecer.
Rio, 22/06/2020 Jailda Galvão Aires.