Pelas vilas, cidades e fazendas por onde este caderno percorreu, a luz elétrica não se fazia presente a não ser nas cidades maiores. Lembro-me bem, que em pequenos municípios, a luz era ligada às seis horas da tarde e era apagada, pontualmente, às 20 horas.
Aqueles assíduos ouvintes do Repórter Esso e das lânguidas novelas, desligavam os seus rádios e iam se acamar.
Sem o advento da televisão, o tempo se alongava dando lugar a criação de bordadas e belas caligrafias. Aquele caderno, em minhas mãos, amarelado pelo tempo, trazia entre tantas poesias de diversos autores, uma pergunta que mais parecia um enígma:
-O que é, o que é, se pouco é divisível e se muito é indivisível?
E a mulher respondeu:
-É o AMOR.
Acredito que a partir desta pergunta despertou em mim a vontade de fazer filosofia.
E eu me punha a pensar: Como é que se divide o pouco e o muito é indivisível?! Mesmo esquadrinhando a matemática jamais encontraria resposta para tão enigmática e contraditória pergunta.
Cursei em 1970, quatro anos de Filosofia que mais afloraram do que deram respostas aos infindáveis porquês. Não foram os livros, não foram os filósofos, não foram os sofistas nem tão pouco os metafísicos que me trouxeram a mais bela e real resposta.
Volto, agora, ao ano de 1960. Na minha frente encontra-se minha Tia Anadir, com seus cabelos negros sobre os ombros, medindo um metro e sessenta de altura e pesando apenas quarenta e dois quilos. Pergunto-me: Como pode tanta força caber dentro de um corpo tão minúsculo e frágil?
Incontáveis vezes, madrugada a dentro, ela levantava da cama, e deslizava suavemente, em direção a rua para atender a um chamado urgente. Sabia que meu pai e minha mãe jamais a deixariam sair às tantas para fazer uma injeção ou aplicar um soro em alguém em virtude da sua saúde debilitada.
Ainda criança adquiriu a doenças de chagas. Fora, nos finais dos anos cinquenta, a Salvador, operar o coração. Os médicos abriram e descobriram que o frágil órgão estava tão grande que não tinha mais nada a fazer. Voltou ao sul do estado, convicta que tinha sido operada. Viveu por mais dez anos.
Na década de sessenta, papai alugou uma casa em Coaraci, cidade vizinha ao lugarejo de Itamotinga aonde morávamos, para que pudéssemos frequentar o curso ginasial. Tia Anadir seguiu conosco para cuidar dos cinco sobrinhos. Impossível?! Não. Ela tinha ordem para nos castigar até fisicamente embora não o fizesse, mas toda semana mamãe recebia, em mãos e ouvidos próprios a relação dos nossos pequenos delitos.
Fizera o curso de enfermagem em Salvador, e, voltando a morar conosco continuou a fazer aquilo que mais gostava na vida – atender doentes e ajudar a curar feridas físicas e da alma. A notícia se espalhou: “Doente que cai na mão da irmã Anadir não morre”.
Enfermeira e amiga do grande e inesquecível
Dr .Themistocles Carvalho de Azevedo, não mais parava. Era requisitada dia e noite, noite e dia, à revelia dos nossos cuidados.
Como eu, em particular, poderia compreender o milagre que a mantinha viva se não tivesse decifrado o tal enigma: Anadir era a personificação do AMOR.
Talvez porisso, nunca se casara. Quem vive um grande amor carnal de almas gêmeas, não o divide com outrem. Somente um grande amor incondissional pode ser dividido em partículas incontáveis.
Grata, minha querida tia, por tudo o que nos deste, por tudo o que fostes, e pelo amor que espalhaste.
Á você dedico este dia.
Saudades.
Rio, 08 de março de 2016
Jailda Galvão Aires.